Março 2024 | À conversa com João Ferreira: A incubadora como um ninho

A IPStartUp esteve à conversa com o professor João Ferreira, docente da Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Setúbal, que refletiu sobre a ligação existente entre o empreendedorismo e a saúde.  

Enquanto mentor da IPStartUp nas áreas de Terapia da Fala e Comunicação e Linguagem, partilha a sua experiência de empreendedor ao longo da sua jornada profissional, bem como reflete sobre a importância de existir uma incubadora que acompanhe os estudantes no desenvolvimento de competências.  

Lê mais sobre o seu testemunho em seguida:  

Qual o papel do empreendedorismo na sua vida? 

Na área de Terapia da Fala, empreendedorismo não era sequer nada que nos fosse incutido ou tópico de conversa. Agora que olho para trás, percebo que sempre fui um bocadinho empreendedor e isso começou logo quando acabei o curso, porque tive de me reinventar e “fazer à vida”. Fui trabalhar para uma instituição, mas ao mesmo tempo acabei por criar também o meu próprio posto de trabalho. Comecei a dar consultas no meu próprio consultório, de forma a conseguir outra fonte de rendimento para além da “normal”.  

Ao mesmo tempo, procurei sempre diferenciar-me do que já era feito. Para mim, empreendedorismo sempre esteve relacionado com o ser diferente e ter conteúdo diferente do trabalho que os meus colegas vinham fazendo. Para me tentar diferenciar no mercado de trabalho, inovei no material que tinha, mas, o engraçado é que a minha perspetiva de inovação na altura já está um bocadinho ultrapassada atualmente. Quando comecei a trabalhar em 96, a utilização das novas tecnologias para a terapia da fala era algo que raramente existia. Então, eu investi num computador portátil para ter algo que me destacasse em relação ao trabalho que fazia e que me permitisse utilizar também material diferenciado com as crianças com quem trabalhava, como jogos didáticos.  

Era algo pouco comum na época. Nós, terapeutas, estávamos muito habituados ao papel, aos cartões e fotografias e ter um computador que permitisse diversificar no material de estimulação já era, sem dúvida, a minha faceta de empreendedor. E posso dizer que teve os seus resultados. Hoje em dia, olho para o material que fiz e percebo que existem coisas tão arcaicas e básicas, mas que, na altura, era algo totalmente inovador como, por exemplo, criarmos material colorido pintando tudo à mão, porque só conseguíamos imprimir material a preto e branco. E é giro fazer essa análise da evolução, mostra-nos a necessidade de estarmos sempre atualizados.  

Enquanto professor, como alcançar o potencial empreendedor que nasce na comunidade académica? 

Tenho consciência de que tenho sido um grande impulsionador para trazer estas temáticas para contexto de sala de aula porque o empreendedorismo, nestas áreas da saúde, não é algo muito ensinado ou explorado.  

Quando pensamos em empreendedorismo na terapia da fala, pensamos muitas vezes em investigação, que acaba por ser também uma componente empreendedora, mas há muito mais do que investigar e criar soluções de intervenção. O conceito de empreender, de criar negócios ou de trabalhar por conta própria não era sequer algo que fosse muito abordado pelos nossos alunos.  

Quando surgiu a oportunidade de trabalhar com a IPStartUp na vertente do empreendedorismo, confesso que até eu achava que “o empreendedorismo era mais para as pessoas da gestão”. E este ainda é um conceito que muitos professores têm. É um bocadinho difícil passar a mensagem de que o empreendedorismo diz respeito a todos, de que está relacionado sim com criar postos de trabalho, mas também com criar soluções novas, com inovar no nosso meio e isso são tudo tarefas que já fazemos, mas que não são encaradas como empreendedorismo. Felizmente, os alunos que passam por mim, ouvem esta conversa desde o primeiro momento.  

E tendo em conta esse grande desafio que enfrentam, como conseguem trazer o empreendedorismo para dentro da sala de aula? 

O empreendedorismo tem vindo a entrar, aos poucos e poucos, no programa e até nos próprios cursos. Em algumas unidades curriculares, vamos falando sobre as competências empreendedoras e o que é isto de ser empreendedor e a IPStartUp tem um papel importante, com as sessões de divulgação.  

Depois, aposto muito nas unidades curriculares que já são focadas na pós-conclusão do curso, em que tento alertar os meus estudantes para os fatores de diferenciação deles enquanto profissionais e para a importância de ser inovador, propor novas abordagens, novas formas de atuar com os utentes.  

Não acho que seja um caminho totalmente consolidado e, nos últimos 2 anos, tenho tentado apostar mais nesta mentalidade, para que seja algo simultaneamente transmissível para os professores.  

Qual foi a motivação para se tornar mentor da IPStartUp e como tem sido essa experiência? 

Começou por curiosidade. Fui a um workshop de empreendedorismo organizado pela IPStartUp, também para compreender melhor o que significava isto de empreender. Depois do workshop, surgiu outro mais prático e dei continuidade. Foram feitos alguns contactos e, como estava motivado, comecei a colaborar com a incubadora. E tem sido uma experiência muito boa e enriquecedora.  

Gostava de ver mais professores, estudantes e equipas a participar nestas atividades de empreendedorismo. E sei que ainda falta muito nesta jornada, mas tem sido um percurso de aprendizagem para mim. E depois, este caminho foi-se construindo também com os próprios estudantes. Hoje, já tenho outra bagagem e sinto que já consigo motivar mais facilmente os estudantes, dar-lhes um apoio mais diferenciado e, principalmente na área de terapia da fala, um apoio que possa ser útil e viável para a equipa.  

Nesta missão, o professor João acaba por ser uma peça fundamental para abrir portas para os cursos de saúde, certo? 

Tenho tido essa preocupação! A verdade é que também tenho tido algum apoio por parte da direção da escola, porque me tem dado “carta branca” para desenvolver atividades e ir contactando com os outros professores. Tenho feito reuniões com os coordenadores dos diferentes cursos da área de saúde e alertado para a importância de os estudantes participarem em atividades de empreendedorismo como, por exemplo, o Poliempreende.  

Os workshops desenvolvidos pelo Poliempreende são uma mais-valia para os estudantes e tenho esse feedback de alunos meus que participaram e que reconhecem a importância depois para o futuro porque os ajuda a focar em outras áreas que não o percurso normal académico. E eu gosto sempre de os incentivar a participar nestes workshops, mesmo que no início se sintam um bocadinho perdidos. 

Para um estudante da área de saúde, sei que pode ser um choque tremendo porque é confrontado com áreas em que não percebe nada, como finanças, planos de negócio e afins. Mas, abrir as portas para o conhecimento que fica extra curso é uma mais-valia porque depois começam a despertar para as questões do empreendedorismo e a perceber que aquilo que aprenderam nestes workshops até tem aplicação e até é importante para o percurso profissional.  

Que importância atribui a uma incubadora académica para um estudante que queira empreender? 

É fundamental, principalmente porque os estudantes sentem-se perdidos e sem rede de suporte, quando acabam o curso. Existir essa abertura para que eles percebam que, quando vão para o mercado, ainda têm a oportunidade de pedir ajuda é muito importante. Olhando para os estudantes da área de saúde que são, na sua maioria, pessoas sem qualquer formação em empreendedorismo e gestão, existir um local que lhes possa dar incubação, “um ninho” para se desenvolverem não só enquanto profissionais, mas também enquanto empreendedores e criadores de uma ideia, é indispensável para o sucesso.  

O mundo do trabalho já e assustador o suficiente para os estudantes que saem das suas licenciaturas, quanto mais assustador deve ser para um estudante que queira fazer algo completamente novo e de raiz sem estar minimamente preparado.  

Relativamente ao Poliempreende. Que balanço faz desta edição?  

Foi a primeira vez que acompanhei uma equipa do princípio ao fim. Já tinha colaborado em outras edições, dando aconselhamento a algumas equipas que passaram pelo Poliempreende, mas esta experiência foi diferente. Foi um desafio muito interessante, mesmo para os estudantes que não tinham qualquer preparação prévia para estas atividades e houve dias em que vinham tão confusos dos workshops. Mas lá ia eu, sentava-me com eles e ajudava-os a fazer um plano de negócios e a pensar sobre orçamentos. Quando eles não compreendiam o que estavam a fazer, ajudava-os a recorrerem aos mentores. E por isso é que é tão importante existir também uma rede de mentores que os auxiliem nesta jornada e que lhes esclareçam as dúvidas.  

O desafio principal nesta jornada foi, muitas vezes, ajudar a acalmar os estudantes. Eles são muito estimulados em certas unidades curriculares a criarem produtos, materiais, novas formas de intervenção, mas, depois, tudo o que tenha que ver com perceber a sua viabilidade, entender as implicações em termos de custos, quem são as pessoas a envolver no processo, onde obter financiamento, já são coisas que lhes transcendem.  

E é nestes aspetos que o Poliempreende se torna verdadeiramente enriquecedor. É nesta participação, nas aprendizagens que retiramos, esquecendo que é um concurso em que se pode ganhar e no qual podem resultar projetos bem estruturados que avancem depois para o mercado. Mas é importante entender o Poliempreende como um concurso de ideação, um desafio muito interessante a ser lançado aos estudantes, que lhes permite crescer e desenvolver os seus projetos.